sexta-feira, 6 de setembro de 2013

João do Nascimento (texto 1)

No mercado João chegou otimista, olhando para o chão e contendo a boca para não sorrir demais, visto que perderia seu foco das compras, dar-se-ia por confuso e toda a oratória ensaiada aos tremores e pausas em casa seria em vão. Começou já na quarta-feira a pensar na prosa mercantil: queria comprar um pedaço pequeno de um frango qualquer, e duas velas grossas verdes para a lápide de sua vózinha. Na sexta-feira o homem já quase falava corrente; passasse moça na rua matutaria que João Augusto havia-se mudado. Mas não, só havia mudado a fala que nem fala era, dado teor de ensaio. Levantou cedo no sábado e chegou no mercadinho, pois. Lugar pequeno, poucas pessoas e muito contexto: "Pedaço de frango qualquer, João? Como é?". E eis que a missa ligeira do João-enrolado foi-se mercado afora. E pensar que pensou João em adjetivar o frango de "qualquer" para parecer corriqueirice da vida dele; queria fingir, João, que ia sempre ao mercado e proseava com todo o povo. Foi-se para casa, com uma mão fora do bolso e a cara toda para dentro, não comeu frango e tampouco codorna, vela não foi acesa e a reza não foi proferida.


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Caminhos de Rosária (texto 3)

Dia destes decidira caminhar, muito vagarosamente, pelo vilarejo. Afazeres aqui e acolá mas desimportantes se a vontade era no nada ficar. Um nada bastante bonito, é verdade. Rosária olhava o céu, fitava as árvores e via a si mesma. Assim era Rosária. “Lá vai a preguiçosa bater perna”, pensava sua vizinha, “tem mais o que faz não?”, irava a indignada sempre ocupada. “Ô, que ocupada”, diria Rosária sobre a vizinha, mas não agora que o intento era caminhar nos pensamentos - ou não pensamentos. A verdade é que Rosária tinha noção e muita de tudo o que tinha que fazer e das coisas da vida, então saíra naquela tarde ensolarada para descobrir um pouco mais de tudo. Daqui um pouco avistou no chão uma folhinha bonita, tomou e mãos, admirou, pouco pensou. Rosária caminhava qual uma garça lenta e satisfeita com o peixe que comeu: comeria mais quando necessário, mas por ora apenas queria observar. E de suas observâncias é que a catarse acontecia: andava consigo, sozinha, com Deus e Nossa Senhora; essa era a vida de Rosária. “Falta é vergonha na cara dessa safada”, prosseguia a vizinha no seu ritual de desmerecimento, “uma baita duma preguiçosa, isso sim!” E Rosária que de nada sabia mas que de outro muito sabia seguiu sua caminhada, sem tempo nem racionamento, depois voltou pra casa e a vida continuou.  

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Ensaio sobre o silêncio

No anseio de se ter algo para dizer, substitui-se a beleza sincera do silêncio pelo brilho confuso de falas aleatórias, e, na ausência de afinidade com o silêncio interior, busca-se a tranquilidade que não existe na turbulência dos ruídos da vida diária. “Silêncio”: substantivo masculino para “interrupção de ruído, calada”, “estado de quem se cala”. O receio que se tem daquele que pouco fala é o retrato do medo de quem pouco pensa (sobre o silêncio) e este que pouco pensa tem mais receio ainda de si mesmo do que de outrem, propriamente. É receoso consigo próprio e com seu silêncio aquele que tem medo de ouvir a própria voz. E mais que ouvir a própria voz, ele tem medo de entendê-la e ter que decodificar o que o seu eu, afinal de contas, tanto tem a dizer dele mesmo – precisaria refletir sobre si, consigo. Logo, e pior ainda, receia sumariamente que a voz que ouve sobre si possa ser imitada por gente de fora; pelas pessoas que não são ele. Eis o medo de ser quem se é por ter que sê-lo perante qualquer sujeito que não si mesmo; esquivando-se, pois, de se calar perante o seu eu. Então o barulho, o medo do silêncio interior e alheio podem ser considerados questão de complexo individual e também social. Mas voltemos ao silêncio: foge-se dele por ser extremamente necessário; e na falsa percepção de que ruídos resolvem silêncios mal-resolvidos, o sujeito se torna caim de si próprio. Calar a voz interior é calar sua tentativa de existência; a existência do eu para mim, do si para si sem plateia. Não à toa entendemos que o verbo “calar” surgira apenas em 1552. Em adendo à questão histórico-social da língua, migremos para o cunho filosófico a respondamos, em silêncio ou ruídos: se o adjetivo “silencioso” surgiu em 1813 e o verbo “silenciar”, profundo e deveras significante, apenas em 1844, podemos entender que foi no silêncio em plena prática que se aprendeu a silenciar? O que ouve quem ouve o que ouve no silêncio do próprio ser pelas ondas sonoras da própria existência?


quinta-feira, 21 de março de 2013

Ideias de Rosária (texto 2)


Houve um dia em que, depois do seu café da manhã configurado por pão, mortadela e café coado, Rosária teve uma ideia que lhe pareceu sumariamente genial: espalhar livros ao longo da Rua das Camélias, em que ela morava, para que anualmente passassem a comemorar o dia da leitura ali. Um único dia de leitura e regozijo queria ela, embora não fosse dada à leitura. “Que ridículo, Rosária!”, disseram. “A mulher pirou de vez!”, e ainda “Ela que vá caçar o que fazer, preguiçosa!” Rosária Mercedes não se preocupou, à tarde foi que pensou consigo que uma relação que a deixou deveras confortada: uma ideia nova era como um lago desconhecido: ninguém se jogava logo de cara, entrava-se aos poucos, deixando a água visitar o corpo, instalar-se, até que todos estavam totalmente encharcados com a água do novo lago. O medo do não convencional amedrontava quase o total da população – o é desde sempre. Sabia que assim também seria com sua ideia: soaria receoso, mas aos poucos poder-se-ia instalar o contexto de leitura que Rosária queria. Todavia demoraria e logo não repercutiu, mas Rosária Mercedes não tinha pressa nem desdém; foi descascar uma laranja.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Dos óculos que se usa


Do ponto de vista da águia, o coelho pouco merece o pensar dela. Por medo ou por coragem, que também é manifestação do medo, o coelho pensa bastante sobre a águia. Do prisma do rato jantado, a cobra foi o apocalipse, mas para a cobra o rato foi o fim do caos, o caos da fome. Pensando por quem tem fome na miséria, pensa-se no que se vai comer. Se a fome vem na fartura, pensa-se sobretudo acerca do que não é suficientemente bom para alimentar. Do ângulo do cristão fanático, o ateu é burro; e para o burro ateu, burro é o fanático. E o burro, real e nem tão animalesco, leva quem for pra lá e pra cá sem ofender ninguém. Deus lá do alto diz “O Reino é meu!” e o Diabo lá risonho responde “A vida é minha!”. O time perdedor é ganhador do pretexto da expressão; para o time que perde quem ganha nunca tem muito o que falar. Ganhar é perder? Na visão da mãe o bebê saiu, na visão do bebê ele mesmo saiu, mas para o mundo o bebê entrou, e um dia vai ter que sair. Quando é que as saídas parecem entradas e nós, eternos bebês, nos confundimos? Do ponto de vista da orelha que ouve o sussurro do gemido alheio, a outra orelha pode apenas imaginar o que foi que a adversária amiga ouviu. E quem vive o que vive vai estar sempre do mesmo lado: o lado próprio do qual não se desvincula. A perspectiva pode ser dupla, bifurcada, dicotômica, com dois gumes: mas cada um dos gumes é um prisma completo em si só. Então ou se está aqui ou acolá; não adianta fingir. No mundo das inferências, impressões e pontos de vista, quem escolhe um sempre escolhe a si próprio – mesmo que a sua opção seja a não escolha. Mente para si quem mente uma visão, esta que jamais mente acerca de si embora na mais profunda raiz da árvore que não é nada senão a gente. A gente que viu, pensou, ancorou a visão numa definição de crença construída pela linguagem, e daí não tem como fugir. Do lado da águia ou do lado de Deus, ou de ambos, o prisma é a fome ou o caos ou o júbilo; tudo vai e tudo fica.

terça-feira, 12 de março de 2013

A Vida de Rosária


Vivia sozinha, não era casada e nem filhos tinha. A casa era pequena, era de madeira, era dela e ali estava ela. Esta era a vida que Rosária tinha pedido a si mesma: pouco fazer, olhar para o céu olhar, não muito pensar e deveras significar. Era daquelas despreocupadas. “Ê, menina, sentada na varanda tais horas da manhã? Ê, vida boa.” Mas Rosária Mercedes não se preocupava, quiçá prestava atenção, mas pouco; continuava a descascar sua laranja, calmamente. Chupava a fruta, comia a fibra, colocava a casca pra secar no varal – útil ao chá e ao chimarrão posteriormente – que poucas roupas prendia, e sentava-se novamente na cadeira que balançava. Sobretudo quando os dias se lhe apresentavam muito bonitos, aí sim é que Rosária nem o serviço de casa fazia. Só amava. Nem a cama arrumava. De tanto amar a vida e tão sem se preocupar, as vizinhas estavam sempre a se incomodar. “É uma baita duma preguiçosa, isso sim!” E é assim que era Rosária Mercedes de Jesus: vagarosamente pra quem via de fora e esta era sua vida, sem pressa nem tempo.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Parábola da arrogância

Em verdade vos digo: aquele que possuir o discurso em concordância com seu pensamento; aquele que usar suas dracmas para o que almejar; aquele que gozar de sua própria criticidade para estabelecer o que é joio e o que é trigo; aquele adepto da desconstrução que alega não ser terra boa; aquele que asseverar que não se atira a primeira pedra, tampouco a segunda e jamais a terceira porque de pedras se usufrui maneiras mais concretas que atira-las nas faces medíocres; aquele que compreender que o cuspe escarrado só ocorre porque da boca que o projeta não emana algo de melhor qualidade que cuspidas rumadas aos pés alheios; aquele que assimilar em essência que verdade só é verdade sendo a verdade do sujeito em integridade e usufruto; aquele que reconhecer Judas como simplesmente um homem plural; aquele que realmente for filho de Deus e fizer uso disso dentro de atribuições racionalizadas e aplicadas; aquele que se chocar ao perceber que a cegueira dos Joãos, sendo simbólica, é tão logo muito mais árdua de curar será o exímio arrogante da sociedade. Pois tendo chegado Jacob, seguido de Pedro e junto de Marcos, adentraram a sinagoga de encontro ao Messias e assim que se achegaram, disse-lhes o saudoso filho de Deus: – que honra tenho por receber tão ilustre visita? E os visitantes, tendo feito cara de desdém perante o léxico bem-articulado de Jesus, responderam-lhe:
– Viemos transmitir tamanha atrocidade que realiza uma mulher: Maria Madalena, Messias, está a prostituir-se pelas ruas de Jerusalém qual a pior das pecadoras! E Jesus, tendo-lhes apresentado sua face em notoriamente projetada em natureza morta, logo em catarse mudara repentina e ironicamente sua expressão dando ênfase às sobrancelhas que quase tocavam o céu, respondeu-lhes em maiêutica refinada seguida de pergunta: – sendo o corpo de Maria Madalena inteiramente dela e de uso intransferível – neste momento do pensamento quase deu-se aos risos por pensar sarcasticamente “exceto à noite” mas prosseguiu – não será coerente concluirmos que faz, Maria Madalena, de fato, o que bem lhe for desejoso com o próprio corpo?
Em verdade completo-lhes: aquele que possuir identidade, existir numa fiel – subjetiva – aliança entre discurso, espírito e obra será tido como arrogante. Ao bom uso da ironia, do sarcasmo, do sorriso bem-pensado e do caminho analisado, será acoplada como condescendente a arte da arrogância. Nada mais arrogantemente puro que ser sincero. Porque de tudo que não sabemos ser e compreender, apenas nos cabe pobremente julgar; configurando-se-lhe o apontamento da arrogância alheia, visto que não lhe exista, o fundamento intrínseco do fracasso daquele que o profere. Palavras de um senhor.