Houve um dia em que, depois do seu café
da manhã configurado por pão, mortadela e café coado, Rosária
teve uma ideia que lhe pareceu sumariamente genial: espalhar livros
ao longo da Rua das Camélias, em que ela morava, para que anualmente
passassem a comemorar o dia da leitura ali. Um único dia de leitura
e regozijo queria ela, embora não fosse dada à leitura. “Que
ridículo, Rosária!”, disseram. “A mulher pirou de vez!”, e
ainda “Ela que vá caçar o que fazer, preguiçosa!” Rosária
Mercedes não se preocupou, à tarde foi que pensou consigo que uma
relação que a deixou deveras confortada: uma ideia nova era como um
lago desconhecido: ninguém se jogava logo de cara, entrava-se aos
poucos, deixando a água visitar o corpo, instalar-se, até que todos
estavam totalmente encharcados com a água do novo lago. O medo do
não convencional amedrontava quase o total da população – o é
desde sempre. Sabia que assim também seria com sua ideia: soaria
receoso, mas aos poucos poder-se-ia instalar o contexto de leitura
que Rosária queria. Todavia demoraria e logo não repercutiu, mas
Rosária Mercedes não tinha pressa nem desdém; foi descascar uma
laranja.
quinta-feira, 21 de março de 2013
segunda-feira, 18 de março de 2013
Dos óculos que se usa
Do ponto de vista da águia, o coelho pouco merece o pensar
dela. Por medo ou por coragem, que também é manifestação do medo, o coelho
pensa bastante sobre a águia. Do prisma do rato jantado, a cobra foi o
apocalipse, mas para a cobra o rato foi o fim do caos, o caos da fome. Pensando
por quem tem fome na miséria, pensa-se no que se vai comer. Se a fome vem na
fartura, pensa-se sobretudo acerca do que não é suficientemente bom para
alimentar. Do ângulo do cristão fanático, o ateu é burro; e para o burro ateu,
burro é o fanático. E o burro, real e nem tão animalesco, leva quem for pra lá
e pra cá sem ofender ninguém. Deus lá do alto diz “O Reino é meu!” e o Diabo lá
risonho responde “A vida é minha!”. O time perdedor é ganhador do pretexto da
expressão; para o time que perde quem ganha nunca tem muito o que falar. Ganhar
é perder? Na visão da mãe o bebê saiu, na visão do bebê ele mesmo saiu, mas
para o mundo o bebê entrou, e um dia vai ter que sair. Quando é que as saídas
parecem entradas e nós, eternos bebês, nos confundimos? Do ponto de vista da
orelha que ouve o sussurro do gemido alheio, a outra orelha pode apenas
imaginar o que foi que a adversária amiga ouviu. E quem vive o que vive vai
estar sempre do mesmo lado: o lado próprio do qual não se desvincula. A perspectiva
pode ser dupla, bifurcada, dicotômica, com dois gumes: mas cada um dos gumes é
um prisma completo em si só. Então ou se está aqui ou acolá; não adianta
fingir. No mundo das inferências, impressões e pontos de vista, quem escolhe um
sempre escolhe a si próprio – mesmo que a sua opção seja a não escolha. Mente
para si quem mente uma visão, esta que jamais mente acerca de si embora na mais
profunda raiz da árvore que não é nada senão a gente. A gente que viu, pensou,
ancorou a visão numa definição de crença construída pela linguagem, e daí não
tem como fugir. Do lado da águia ou do lado de Deus, ou de ambos, o prisma é a
fome ou o caos ou o júbilo; tudo vai e tudo fica.
terça-feira, 12 de março de 2013
A Vida de Rosária
Vivia sozinha, não era casada e nem filhos tinha. A casa era pequena, era de madeira, era dela e ali estava ela. Esta era a vida que Rosária tinha pedido a si mesma: pouco fazer, olhar para o céu olhar, não muito pensar e deveras significar. Era daquelas despreocupadas. “Ê, menina, sentada na varanda tais horas da manhã? Ê, vida boa.” Mas Rosária Mercedes não se preocupava, quiçá prestava atenção, mas pouco; continuava a descascar sua laranja, calmamente. Chupava a fruta, comia a fibra, colocava a casca pra secar no varal – útil ao chá e ao chimarrão posteriormente – que poucas roupas prendia, e sentava-se novamente na cadeira que balançava. Sobretudo quando os dias se lhe apresentavam muito bonitos, aí sim é que Rosária nem o serviço de casa fazia. Só amava. Nem a cama arrumava. De tanto amar a vida e tão sem se preocupar, as vizinhas estavam sempre a se incomodar. “É uma baita duma preguiçosa, isso sim!” E é assim que era Rosária Mercedes de Jesus: vagarosamente pra quem via de fora e esta era sua vida, sem pressa nem tempo.
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