quinta-feira, 21 de março de 2013

Ideias de Rosária (texto 2)


Houve um dia em que, depois do seu café da manhã configurado por pão, mortadela e café coado, Rosária teve uma ideia que lhe pareceu sumariamente genial: espalhar livros ao longo da Rua das Camélias, em que ela morava, para que anualmente passassem a comemorar o dia da leitura ali. Um único dia de leitura e regozijo queria ela, embora não fosse dada à leitura. “Que ridículo, Rosária!”, disseram. “A mulher pirou de vez!”, e ainda “Ela que vá caçar o que fazer, preguiçosa!” Rosária Mercedes não se preocupou, à tarde foi que pensou consigo que uma relação que a deixou deveras confortada: uma ideia nova era como um lago desconhecido: ninguém se jogava logo de cara, entrava-se aos poucos, deixando a água visitar o corpo, instalar-se, até que todos estavam totalmente encharcados com a água do novo lago. O medo do não convencional amedrontava quase o total da população – o é desde sempre. Sabia que assim também seria com sua ideia: soaria receoso, mas aos poucos poder-se-ia instalar o contexto de leitura que Rosária queria. Todavia demoraria e logo não repercutiu, mas Rosária Mercedes não tinha pressa nem desdém; foi descascar uma laranja.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Dos óculos que se usa


Do ponto de vista da águia, o coelho pouco merece o pensar dela. Por medo ou por coragem, que também é manifestação do medo, o coelho pensa bastante sobre a águia. Do prisma do rato jantado, a cobra foi o apocalipse, mas para a cobra o rato foi o fim do caos, o caos da fome. Pensando por quem tem fome na miséria, pensa-se no que se vai comer. Se a fome vem na fartura, pensa-se sobretudo acerca do que não é suficientemente bom para alimentar. Do ângulo do cristão fanático, o ateu é burro; e para o burro ateu, burro é o fanático. E o burro, real e nem tão animalesco, leva quem for pra lá e pra cá sem ofender ninguém. Deus lá do alto diz “O Reino é meu!” e o Diabo lá risonho responde “A vida é minha!”. O time perdedor é ganhador do pretexto da expressão; para o time que perde quem ganha nunca tem muito o que falar. Ganhar é perder? Na visão da mãe o bebê saiu, na visão do bebê ele mesmo saiu, mas para o mundo o bebê entrou, e um dia vai ter que sair. Quando é que as saídas parecem entradas e nós, eternos bebês, nos confundimos? Do ponto de vista da orelha que ouve o sussurro do gemido alheio, a outra orelha pode apenas imaginar o que foi que a adversária amiga ouviu. E quem vive o que vive vai estar sempre do mesmo lado: o lado próprio do qual não se desvincula. A perspectiva pode ser dupla, bifurcada, dicotômica, com dois gumes: mas cada um dos gumes é um prisma completo em si só. Então ou se está aqui ou acolá; não adianta fingir. No mundo das inferências, impressões e pontos de vista, quem escolhe um sempre escolhe a si próprio – mesmo que a sua opção seja a não escolha. Mente para si quem mente uma visão, esta que jamais mente acerca de si embora na mais profunda raiz da árvore que não é nada senão a gente. A gente que viu, pensou, ancorou a visão numa definição de crença construída pela linguagem, e daí não tem como fugir. Do lado da águia ou do lado de Deus, ou de ambos, o prisma é a fome ou o caos ou o júbilo; tudo vai e tudo fica.

terça-feira, 12 de março de 2013

A Vida de Rosária


Vivia sozinha, não era casada e nem filhos tinha. A casa era pequena, era de madeira, era dela e ali estava ela. Esta era a vida que Rosária tinha pedido a si mesma: pouco fazer, olhar para o céu olhar, não muito pensar e deveras significar. Era daquelas despreocupadas. “Ê, menina, sentada na varanda tais horas da manhã? Ê, vida boa.” Mas Rosária Mercedes não se preocupava, quiçá prestava atenção, mas pouco; continuava a descascar sua laranja, calmamente. Chupava a fruta, comia a fibra, colocava a casca pra secar no varal – útil ao chá e ao chimarrão posteriormente – que poucas roupas prendia, e sentava-se novamente na cadeira que balançava. Sobretudo quando os dias se lhe apresentavam muito bonitos, aí sim é que Rosária nem o serviço de casa fazia. Só amava. Nem a cama arrumava. De tanto amar a vida e tão sem se preocupar, as vizinhas estavam sempre a se incomodar. “É uma baita duma preguiçosa, isso sim!” E é assim que era Rosária Mercedes de Jesus: vagarosamente pra quem via de fora e esta era sua vida, sem pressa nem tempo.